Ninguém vê racismo quando brancos ocupam 90% das vagas
Diretor Administrativo e Financeiro do Procon, ex-vereador e ex-prefeito de Vitória, Ademir Cardoso sabe que é uma exceção. Negro, filho de pais pobres, que cursaram só até o antigo primário, desde garoto ele foi educado para superar barreiras. Cursou Direito e Geografia, foi vereador pela primeira vez aos 18 anos, e está certo de que é preciso que se estabeleça uma política de compensação para que negros tenham acesso à escolaridade superior e a bons empregos no país. Para Ademir, as cotas podem ser uma opção. "Ninguém vê racismo na realidade atual, onde brancos ocupam às vezes 90% das vagas", critica ele.
Como o fato de ser negro interferiu na sua vida?
Fui educado para superar barreiras. Minha mãe, dona de casa, e meu pai, escriturário da Vale - tesoureiro da Igreja Batista de Jardim América, ele fez o curso primário - tiveram seis filhos. Sempre estudei em escola pública, que tinha um bom ensino, e por isso nela estudavam pessoas de melhor poder aquisitivo. Naquela época, escola particular era popularmente conhecida como pagou, passou. No Colégio Estadual, onde fiz o ginásio e o científico, na década de 60 eu era um dos poucos negros. Nessa época, no Brasil, os negros eram netos ou bisnetos de escravos. Considerando que as pessoas viviam bem menos do que hoje, o espaço das gerações era menor. Sou filho de pai negro e de mãe miscigenada - negro com português.
Como seus pais lidavam com a questão racial?
Perdi quatro irmãos, todos com doença falciforme. Perdi meu pai aos 12 anos, e minha mãe ficou só comigo e com a minha irmã, Miriam. Mas ela não descuidava. E dizia sempre que nós éramos bonitos. Não nos permitiu pensar em deixarmos de estudar.
O senhor fez dois cursos superiores...
Sim, Direito e Geografia, e isso certamente tem a ver com a orientação da minha mãe sobre os estudos. Advoguei durante quatro anos - fiz Direito porque queria ser doutor -, mas me apaixonei pelo magistério. Dei aulas por mais de 30 anos.
O fato de sua mãe ter ficado viúva e seus irmãos terem sofrido, doentes, o fez ser mais dedicado aos estudos?
Meus irmãos sofreram muito. Da rua, dava para ouvir seus gritos de dor por causa da doença. Eu não tinha vontade de voltar para casa... Minha mãe era exigente com a escola, e dizia sempre que não precisávamos ter vergonha da nossa cor, das nossas origens. Nasci em Itaquari, e quando meu pai morreu fomos para Jardim América. Lá, meus quatro irmãos morreram, um atrás do outro. Ficamos só eu e a Miriam. Lembro que a mãe do meu melhor amigo, que era negro, dizia para ele: "Filho, esse negócio de faculdade não é para gente, não".
O senhor credita aos seus pais sua consciência de raça e a determinação para vencer barreiras na vida?
Sim, com certeza. Na nossa casa havia um eixo, que era a dona Jovita. Com todas as adversidades, ela não permitia que fraquejássemos. Mas há também a questão religiosa, que é fundamental. Quem não tem um nome para proteger ou um Deus para acreditar, degringola, porque os valores estão perdidos. Noventa por cento dos meus colegas do bairro, daquela época, não concluíram os estudos por falta de estímulo. Não viam o estudo como fator de emancipação, principalmente para o negro. Eu e a Miriam sempre tivemos uma visão da questão racial muito forte. O negro, por direito, precisa ter seu espaço garantido na sociedade.
Qual sua análise da questão racial no Brasil?
Todos os problemas, inclusive a má distribuição de renda no Brasil, têm origem racial. Basta ver a história. A abolição da escravatura foi feita sem que se estabelecessem regras de compensação. Junto com a lei que aboliu a escravidão seria preciso dar condições de as pessoas, livres, continuarem vivendo, produzindo.
Para que não permanecessem num contexto de exclusão...
Claro. Os escravos tinham como se alimentar, se abrigar, mas depois da libertação ficaram desamparados. Saíram das áreas rurais e foram para as urbanas, dando origem às primeiras favelas. Alguns faziam pequenos serviços para os brancos, outros passaram a ser os desocupados, todos sem futuro. E essa população foi aumentando, sem perspectiva. Hoje, a diferença de escolaridade de negros para brancos se mantém a mesma de 1900, segundo o Ipea.
Um estudo do sociólogo do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro Carlos Antônio Ribeiro mostrou que a cor só interfere no acesso à escolaridade e a trabalho quando as pessoas chegam ao terceiro grau.
Eu não concordo. Quem vai às lojas de maior padrão, onde a comissão de vendas é mais alta, observa que é mínimo o percentual de negros vendedores. Em outras atividades onde não se exige escolaridade mais elevada, acontece o mesmo.
O programa da Oprah Winfrey, no canal GNT, mostrou uma pesquisa feita por uma jovem negra americana que exibiu duas bonecas para crianças negras, pedindo para que elas apontassem a mais bonita. As crianças indicaram a branca, e demonstraram constrangimento por se parecerem com a negra. Porque o perfil preferido é o europeu: cabelos lisos, nariz afilado. O que é uma mulher bela na concepção brasileira?
Lá em casa recebemos intercambistas. Um deles, uma australiana de pele bem branca, disse que a nossa TV não reflete na tela o povo brasileiro que se vê nas ruas.
O senhor já se sentiu rejeitado por ser negro?
Já vivi muitas situações. Mas eu acho que o brasileiro não tem preconceito individual. Branco casa com negro, convive, joga bola junto. Nosso problema é institucional. A beleza é branca, que é vista como a cor do bem. Se nossos conceitos de pureza e beleza são brancos, o preto representa o oposto. Negro é sinal de coisa feia. Isso fica no inconsciente das pessoas.
Mas e as suas experiências?
Numa determinada ocasião, estava no escritório onde advogava com outro colega, uma pessoa me perguntou: "Os advogados já chegaram?", achando que eu era o atendente. No fórum, fui chamado para atuar num sumário de acusação, e o juiz perguntou a uma testemunha se ela conhecia os acusados. Ela olhou, e disse: "Eu conheço esses quatro, mas aquele lá eu não conheço não". O aquele lá era eu, de terno e gravata. Em outra ocasião, depois de uma inauguração, como prefeito de Vitória - porque Luiz Paulo Vellozo Lucas havia viajado -, aguardava com dois seguranças a chegada do motorista quando uma senhora, aparentemente perdida, me perguntou: "O senhor que trabalha como segurança aqui, me diz como é que eu faço para chegar...".
Como o senhor vê a definição de cotas para negros no ensino universitário público?
Não tem que ter cotas só porque a origem da pessoa é negra. Tem que se ver quem é o discriminado. É a pessoa negra com as características físicas típicas: cor da pele, cabelo, nariz. Essa, por não compor o quadro de beleza estabelecido pela sociedade, tem menos oportunidade.
Há quem defenda cotas para egressos do ensino público, independentemente da raça.
A escola técnica fez isso, estabelecendo 20% de vagas para escola pública. Vá lá. Eu fiz questão de fazer o levantamento, já que a maioria dos alunos era egressa da rede municipal de Vitória. Sabe de onde? De Jardim da Penha, Jardim Camburi, e de outros bairros de bom padrão. De modo geral, alunos brancos ou de pele clara. Negros com traços de brancos enfrentam menos dificuldade de conseguir um emprego numa loja.
Existem pessoas que temem pela intolerância racial.
Já pensou num movimento pela redução das cotas dos brancos nas universidades públicas? Porque alguma coisa está errada, já que a vantagem percentual deles nos espaços de ensino, de trabalho, é enorme, às vezes chega a até 90%. Eu sou exceção, mas isso não desmerece a tentativa de se mudar o quadro que está aí. O fato é que a sociedade não vê racismo na realidade atual. A solução é estabelecer cotas? Não sei. Mas a sociedade não pode achar que o que está aí é normal, com brancos tendo mais acesso à universidade, a empregos melhores. E quem fala contra isso é visto, é apontado como racista. Como o país quer crescer se um percentual altíssimo de sua população, por causa do seu aspecto físico, por causa da sua etnia, não tem acesso a tudo o que deve ser disponível para todas as pessoas?
Então, o que fazer?
É preciso tirar o atraso histórico. O que a história fez é preciso reparar. Com dinheiro? Não acho, mas é preciso fazer algo. Na Nova Zelândia os indígenas são protegidos com legislação especial nas universidades, nos empregos. Os negros foram trazidos forçados para o Brasil, e foram responsáveis pelo fortalecimento da nação, mas num determinado momento, acabaram sendo descartados. Em algumas áreas, os europeus que imigraram para o Brasil ganharam terras. Isso não é cota? Na década de 1970, os filhos de fazendeiros tinham cotas reservadas para cursar agronomia. E não havia protesto.
A baixa auto-estima leva ao processo de "branquização"?
Na periferia, a maioria dos jovens negros não quer ser negra. Imagine alguém que cresce ouvindo que seu cabelo é feio, é ruim, que seu nariz é feio, é chato, e também venha de uma família desestruturada. Um menino que não veja possibilidade de sua aceitação no mundo formal, é facilmente absorvido pelo tráfico de drogas. Se a sociedade não se debruçar sobre essa situação, não teremos futuro. Dois problemas sérios se entrelaçam no Brasil. A questão racial e a questão da ética, que é cultural. Um país que não se preocupa com igualdade e com ética não tem futuro.
Ética e igualdade
Para onde vamos?. Para Ademir Cardoso, no Brasil, dois problemas que ele considera sérios se entrelaçam: a questão racial e a questão da ética, que é cultural. "Um país que não se preocupa com igualdade e com ética não tem futuro", afirma ele.
Magistério e política
Ademir Cardoso, 60 anos, é casado, tem três filhas, e ocupa o cargo de diretor Administrativo e Financeiro do Procon Estadual. Fez faculdades de Direito e Geografia, na Universidade Federal do Espírito Santo. Advogou por quatro anos, mas optou por uma carreira de magistério. Por mais de 30 anos deu aulas de Geografia, principalmente em pré-vestibulares. Foi vereador pela primeira vez aos 18 anos, em Cariacica. Anos após, se elegeu para a Câmara de Vitória, em duas legislaturas. Foi secretário de Cidadania e vice-prefeito de Vitória, no governo Luiz Paulo Vellozo Lucas (PSDB).
Fonte: Jornal A Gazeta, Vitória, ES
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