RELEASE: Os que Voltaram - A História dos Retornados Afro-Brasileiros na África Ocidental no Século XIX
De: Alcione Meira Amos
A data é maio de 1999 e a fotografia mostra um homem de cor usando um barrete cerimonial e uma faixa com as cores verde e amarelo. O homem está sentado no que parece ser um trono e está acompanhado de mulheres trajando coloridas vestimentas típicas da África ocidental. Mas aos seus pés estão duas crianças segurando a bandeira brasileira. Será que ele está no Brasil ou na África? Está nos dois lugares, pelo menos no seu imaginário. Mais de 200 anos depois que entre 3.000 e 8.000 afro-brasileiros começaram a retornar para a África, o Brasil ainda está na consciência de seus descendentes em quatro países da África ocidental: Benim, Gana, Nigéria e Togo.
O homem na foto é Honoré Feliciano de Souza e ele é o oitavo “Chachá” – título honorífico que foi dado ao seu antepassado Francisco Félix de Souza pelo rei do Daomé. O Sr. Honoré considera o Brasil seu “verdadeiro país”. No dia em que a foto foi tirada ele e mais 35 “brasileiros” estavam esperando um professor que vinha da Embaixada do Brasil em Lagos (Nigéria) para lhes ensinar português.
Como esta conexão entre o Brasil e a África ocidental foi feita, e como permaneceu tão forte? O livro Os Que Voltaram, de Alcione Meira Amos, conta a história dos Agudás – forma pela qual os afro-brasileiros são chamados no Benim e na Nigéria –, dos Tabom – como são chamados em Gana – e dos afro-brasileiros do Togo – alguns dos quais são chamados Nagô.
Embora os ex-escravos brasileiros retornados tivessem origens étnicas diversas, ao chegar à África Ocidental eles se organizaram a partir da experiência comum que haviam tido no Brasil, a escravidão. Assim sendo, se no Brasil tinham dado ênfase a sua cultura africana, na África viriam a enfatizar a cultura brasileira adquirida durante o cativeiro. De um modo e do outro, tentavam encontrar um papel diferenciado nas novas culturas nas quais haviam sido inseridos.
Foram bem sucedidos nesta empreitada. De volta a África, mesmo sendo chamados derrogatoriamente de Amaros na Nigéria (ou seja, aqueles que vieram de fora) e até comparados a judeus errantes e filhos pródigos no Benim, eles prevaleceram e se tornaram parte integral das sociedades que haviam escolhido como suas novas pátrias.
Eles tinham muitos fatores positivos a seu favor. A maioria dos afro-brasileiros retornados tinha voltado para a África por conta própria, o que indicava um alto grau de dinamismo e autoconfiança. É verdade que alguns tinham sido deportados, principalmente depois da Revolta dos Malês, em 1835, mas até mesmo este fato iria incentivá-los a trabalhar mais e a serem mais dinâmicos, pois sabiam que não poderiam voltar facilmente para o Brasil. Estes aspectos da sua experiência faziam com que os retornados afro-brasileiros fossem extremamente pragmáticos, a ponto de se dedicarem sem escrúpulos ao tráfico de escravos, do qual muitos deles tinham sido vítimas, pois este, pelo menos até meados do século XIX, era um dos meios de rapidamente se firmarem economicamente.
Este pragmatismo também era aparente na sua religiosidade, que poderia ter sido um entrave à adaptação ao novo ambiente. Se o catolicismo os marcava como europeizados e culturalmente superiores à população local, dando-lhes até o direito de se auto-identificar como “brancos” eles, por outro lado, continuavam praticando as religiões nativas que haviam trazido da África para o Brasil e com as quais haviam voltado para a África. Sem dúvida, isto facilitava de algum modo o seu relacionamento com as populações locais.
Muitos tinham se convertido ao islamismo no Brasil como uma forma de resistência à escravidão. Mas o islamismo que os retornados afro-brasileiros praticavam era secular e pragmático e não imbuído do jihadismo que permeava e ainda permeia o islamismo até os dias de hoje. Em alguns casos, o catolicismo, o islamismo e as religiões locais viviam lado a lado, no seio de uma mesma família, sem causar problemas. Outro aspecto deste pragmatismo foi que os afro-brasileiros retornados se deram bem com os franceses, os ingleses e os alemães, os três poderes europeus sob os quais foram colonizados.
O impacto cultural dos retornados nas sociedades dos países onde se fixaram quando de volta a África foi, sem dúvida alguma, muito maior do que poderia ter sido esperado dado seu pequeno número. Na Nigéria, estabeleceram uma nova arquitetura; introduziram novas palavras no fom, uma das línguas faladas no Benim; e os descendentes dos primeiros retornados afro-brasileiros estiveram à frente da luta contra o colonialismo no Togo, muito antes que a chama do movimento de libertação estivesse acesa na costa ocidental da África.
Várias características permitiram que os afro-brasileiros e seus descendentes se posicionassem na alta sociedade de seus respectivos países. A principal talvez tenha sido sua dedicação a dar aos seus filhos a melhor educação possível. Assim é que, em Uidá, a escola formada pelos padres católicos era freqüentada pelos filhos dos afro-brasileiros retornados, enquanto as crianças locais eram proibidas de fazer o mesmo. Já em Lagos, a primeira escola a ser fundada foi a dos protestantes, mas nem por isto os afro-brasileiros católicos hesitaram em matricular seus filhos na primeira turma. No Togo, o primeiro pedido dos afro-brasileiros quando os padres missionários católicos alemães chegaram a Lomé foi que fundassem uma escola. A educação sempre vinha em primeiro lugar, onde quer que os afro-brasileiros estivessem na África.
Além disso, os afro-brasileiros eram excelentes comerciantes. Desde o infame tráfico de escravos, passando pelas plantações de palma do século XIX, de onde o óleo era extraído para exportação, até a criação das modernas fábricas, gráficas e casas comerciais no século XX, os afro-brasileiros estavam sempre presentes na vida econômica dos países onde concentraram-se na África ocidental.
Outra característica que fazia deles um elemento valioso para os países recentemente libertos da colonização européia era o conhecimento de línguas. Os primeiros retornados eram pelo menos bilíngües, falando uma língua africana e o português. Seus filhos continuaram com a tradição e muitos se tornaram verdadeiros poliglotas, como Sylvanus Epiphanio Kwami Olympio, o primeiro presidente do Togo, que falava nada menos que sete línguas: fom, evé, iorubá, português, alemão, inglês e francês.
Criativos e interessados em novas técnicas foram os afro-brasileiros que introduziram o cinema no Togo e se destacaram no ramo da fotografia, tanto no Togo como na Nigéria, no começo do século XX. E foi um afro-brasileiro quem, pela primeira vez, usou uma técnica de conservação de energia no Togo – Octaviano Olympio – quando fez uso dos resíduos de suas plantações como fonte de energia para os fornos que produziam os tijolos de sua olaria. Por seu lado, estes tijolos seriam utilizados na construção de novas estruturas na emergente Lomé.
Mas talvez seja a teimosa presença das lembranças do Brasil e de coisas brasileiras que até hoje se encontra na África ocidental, na figura de comidas e festas típicas, a melhor testemunha do sucesso da empreitada lançada pelos retornados. Uma história que está agora entrando no seu quarto século. Muito interessante será ver até quando esta lembrança vai durar. Será este um imenso caso de saudade? Quem sabe...
A AUTORA
Alcione Meira Amos é brasileira, residente nos EUA desde 1972. Trabalhou por quase 30 anos no Banco Mundial, em Washington, onde atuou como pesquisadora no Department of Women in Development, e como bibliotecária. Há mais de 20 anos se dedica a pequisar a história de sociedades pós-escravidão, inclusive a dos afro-brasileiros retornados para a África, tendo vários artigos publicados sobre este assunto em revistas brasileiras e internacionais. É formada em Letras pela FAFI-BH e Mestre em Biblioteconomia pela Catholic University of America, Washington, D.C., EUA.
É autora de The Life of Luis Pacheco: Last Surviror of Dade's Battle e editora de The Black Seminoles: History of a Freedom-Seeking People, ambos publicados nos EUA.
Ficha técnica
Formato: 16x23cm
Nº de páginas: 176
Capa: Papel supremo 250g
Miolo: Papel Chamois Bulk 90g
Preço de Capa: R$ 36,00
Tradição Planalto Editora
Tel: (31) 3226-2829
livro@tradicaoplanalto.com.br
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