Obama sobe ao poder com mais de 80% citando otimismo
Com público estimado em 750 mil pessoas, que aglutinadas disfarçavam o frio perto de 0ºC na tarde de ontem em Washington, um show com nomes de primeiro time celebrou Barack Obama e ratificou mais uma vez a euforia popular com a qual ele assume amanhã a Casa Branca.
Obama e a mulher, Michelle, no show realizado ontem no Lincoln Memorial, em Washington; cerimônia de posse será amanhã (20)
Duas pesquisas divulgadas pela manhã colocaram números nessa imagem. Na New York Times/CBS News, mais de 80% dos americanos estão otimistas para seu governo --taxa ao menos nove pontos percentuais superior às dos últimos seis presidentes. Na aferição Washington Post/ABC News, o mesmo percentual tem imagem "favorável" a ele.
Para as perguntas sobre como usará a notória expectativa popular em seu favor, uma resposta ressonante foi dada no fim de semana. Obama lançou o projeto "Organizando-se pela América", em que convoca grupos comunitários que se engajaram em sua campanha para se filiarem a uma nova rede na internet, por meio da qual poderão, diz Obama, "continuar organizando e trazendo mais gente para o processo político".
Na prática, ele tenta reforçar a base de apoio para projetos do governo em ações de voluntariado e arrecadação de dinheiro, mas também de pressão política sobre legisladores e Estados. Assim, quer importar para a Casa Branca o conceito de revolução "de baixo para cima", que o impulsionou na eleição.
A boa notícia para o próximo presidente é que o público que espera tanto de seu governo também está disposto a ter paciência. Na pesquisa do "Times", uma minoria prevê mudança efetiva em áreas prioritárias no primeiro ano de governo (na economia, 17%, e em saúde pública, apenas 9%). A consulta ouviu 1.112 adultos entre 12 e 15 de janeiro (a margem de erro é de três pontos percentuais para mais ou para menos). O número de "otimistas" (80%) é o maior desde a pesquisa começou, no governo de Jimmy Carter (1977, 70%).
Desde então, George W. Bush entrou na Casa Branca com a menor taxa de esperança (64%) e saiu dela com o pior índice de aprovação presidencial de todos os tempos: 22%.
Chão de estrelas
Apesar de a posse de amanhã ser a mais cara da história (mais de US$ 150 milhões), Obama anunciou o corte da verba para fogos de artifício para o Concerto de Posse, de ontem, para economizar --e assim mostrar sintonia com os americanos diante da crise econômica.
As relações de proximidade e distância com o povo oscilam. Ontem, no show no Memorial Lincoln --que teve estrelas como Bono, Beyoncé e Garth Brooks--, a família presidencial ficava no palco protegida por um aquário blindado. Por outro lado, os simpatizantes de Obama compartilharão um dos momentos mais exclusivos da posse: os bailes de gala.
O site MyBarackObama, rede social criada para sua campanha por um fundador do Facebook, convocou os mais de 1 milhão de militantes cadastrados a organizar seus próprios bailes com a comunidade e partilhar juntos da posse, como se fosse Natal ou Ação de Graças.
"Obama é agora como se fosse da minha família. Essa posse também é minha", disse Elisabeth Patrick, vinda de Indiana para a posse.
O Memorial Lincoln foi onde Martin Luther King fez, em 1968, o discurso histórico "Eu tenho um sonho". Obama --que celebra hoje o feriado pelo líder negro-- disse para a multidão: "Vocês vieram por acreditar no que esse país pode ser e vão nos ajudar a chegar lá".
Obama conta o que seu pai fez com homem que o chamou de "macaco"; leia trecho
Barack Obama, o 44º presidente dos Estados Unidos a partir de 20 janeiro, mal conviveu com seu pai, o queniano Barack Obama Sr. Quando Obama ainda era criança, o casamento de seus pais terminou, seu pai retornou à África, e sua mãe, a americana Ann Dunham, casou-se com o indonésio Lolo Soetoro, que tornou-se padrasto do jovem menino.
Mesmo distante de seu pai biológico, Obama cresceu ouvindo histórias sobre ele contadas por sua mãe e seus avós. Obama conta uma delas no livro "A Origem dos Meus Sonhos" (Editora Gente), autobiografia na qual revela a sua história, a história de sua família e a forma como encara o mundo.
A narrativa começa com o pai de Obama sendo chamado de "macaco" por um americano branco em um bar do Havaí. E termina com esse mesmo americano oferecendo dinheiro para o pai de Obama, na tentativa de comprar o seu perdão pelo xingamento racista.
A história, narrada por Obama, pode ser lida na íntegra abaixo, em trecho retirado do livro "A Origem dos Meus Sonhos".
Que meu pai não se parecia nada com as pessoas em torno de mim -- que ele era negro como piche, e minha mãe, branca como leite -- mal foi registrado por minha mente. Na verdade, só me recordo de uma história que se referia explicitamente ao assunto de raça; à medida que eu crescia, ela se repetiria mais frequentemente, como se tivesse capturado a essência de moralidade que a vida de meu pai havia se tornado.
De acordo com a história, após longas horas de estudo, meu pai foi se encontrar com meu avô e vários outros amigos em um bar de Waikiki. Todos estavam alegres, comendo e bebendo ao som de uma guitarra típica havaiana, quando repentinamente um homem branco disse ao garçom, bem alto para todo mundo ouvir, que não se deveria tomar uma boa bebida "perto de um macaco". Houve um momento de silêncio, e as pessoas se voltaram para olhar meu pai, esperando uma briga.
Em vez disso, ele se levantou, caminhou em direção ao homem, sorriu e começou a discursar sobre o absurdo do fanatismo e da intolerância, a promessa do sonho americano e os direitos universais do homem. "Esse sujeito se sentiu tão mal quando Barack terminou", disse vovô, "que ele tirou 100 dólares do bolso e deu a Barack na mesma hora. Pagou todas as nossas bebidas e puu-puus [espécie de tira-gosto típico da cozinha havaiana] pelo resto da noite - e também o aluguel do seu pai pelo resto do mês".
Quando entrei na adolescência, passei a duvidar da veracidade dessa história e a deixei de lado com todo o resto. Até que, muitos anos depois, recebi um telefonema de um nipo-americano que dizia ter sido colega de faculdade de meu pai no Havaí e que, agora, dava aulas em uma universidade no Meio-Oeste dos Estados Unidos.
Ele foi muito educado, embora estivesse um pouco envergonhado por sua impulsividade. Explicou que havia lido uma entrevista comigo em um jornal local e que a menção ao nome de meu pai havia lhe trazido de volta muitas recordações. Então, durante o curso de nossa conversa, ele repetiu a mesma história que meu avô havia me contado, a história de um homem branco que havia tentado comprar o perdão de meu pai. "Nunca me esquecerei disso", disse-me o homem ao telefone; e na sua voz ouvi o mesmo tom que eu tinha ouvido do meu avô tantos anos antes, aquele tom de descrença -- e de esperança.
"A Origem dos Meus Sonhos"
Autores: Barack Obama
Editora: Editora Gente
Páginas: 452
Quanto: Em torno de R$ 49,90
Obama foi confundido com manobrista e seguido por seguranças; leia depoimento.
A plena realização do sonho de Martin Luther King de viver em um país onde as pessoas são julgadas pelo caráter e não pela cor da pele ainda não aconteceu. Quem afirma é Barack Obama, que assume a presidência dos Estados Unidos amanhã (20).
"Sou capaz de relatar a ladainha usual de pequenos insultos que me foram direcionados: seguranças me seguindo quando entro em lojas de departamento, casais brancos que me jogam a chave de seus carros quando estou parado fora do restaurante esperando pelo valet, carros de polícia que me param por nenhuma razão aparente", diz Obama.
O "desabafo" do futuro presidente dos EUA está no livro "Audácia da Esperança - Reflexões Sobre a Reconquista do Sonho Americano" (Larousse, 2007), ensaio autobiográfico no qual Barack Obama fala sobre as tensões raciais nos EUA, sua vida e apresenta suas idéias para o país. No livro, ele também discute Bush e seu governo, a intervenção norte-americana no Iraque, o terrorismo islâmico e outros temas americanos.
No trecho do livro que pode ser lido abaixo, Obama usa exemplos de sua vida pessoal e indicadores sociais para comprovar seu argumento de que o racismo ainda não foi superado nos EUA.
Quando sou apresentado às pessoas, elas às vezes citam um trecho do discurso que fiz na Convenção Nacional Democrata de 2004 que pareceu causar comoção: "Não existem os Estados Unidos dos negros, os Estados Unidos dos brancos, os Estados Unidos dos descendentes de latinos ou os Estados Unidos dos descendentes de asiáticos - existem apenas os Estados Unidos da América". Para eles, essa idéia reflete uma visão dos Estados Unidos finalmente livres do passado de Jim Crow e da escravidão, dos campos de concentração japoneses e dos bóias-frias mexicanos, das tensões trabalhistas e dos conflitos culturais - um país que concretiza o desejo de Martin Luther King de não sermos julgados pela cor de nossa pele, mas pelo nosso caráter.
De certa forma, não tenho outra escolha a não ser acreditar nessa visão dos Estados Unidos. Como filho de negro com branca, nascido na "mistura de raças" do Havaí - e com uma irmã meio indonésia (que é normalmente confundida com mexicana ou porto-riquenha), um cunhado e uma sobrinha de ascendência chinesa, alguns parentes consanguíneos que parecem a Margaret Thatcher e outros que poderiam se fazer passar pelo Bernie Mac, de maneira que as reuniões familiares no Natal parecem uma reunião da Assembléia-Geral da ONU -, nunca tive como restringir minha lealdade com base na raça, ou medir meu valor baseado na minha tribo.
Além disso, acredito que parte da genialidade dos Estados Unidos deva-se à sua capacidade de incorporar os recém-chegados e construir uma identidade nacional com base nos diferentes povos que chegaram às nossas terras. Nisso recebemos a ajuda de uma Constituição que, apesar de ter sido estragada pelo pecado original da escravidão, tem em seu bojo a idéia de igualdade perante a lei; também contamos com a ajuda de um sistema econômico que, mais do que qualquer outro, ofereceu oportunidades a todos que tivessem potencial, sem considerar status, título ou classe social. É claro, os sentimentos de racismo e xenofobia têm minado repetidamente esses ideais; os poderosos e privilegiados têm muitas vezes explorado o preconceito para facilitar o favorecimento próprio. Mas, nas mãos dos reformistas, de Tubman a Douglass, Chavez e King, esses ideais de igualdade aos poucos moldaram a maneira como enxergamos a nós mesmos e possibilitaram o surgimento de uma nação cujo multiculturalismo assumiu uma forma única, diferente da de qualquer outro país.
Por fim, essas linhas em meu discurso descrevem a realidade demográfica dos Estados Unidos do futuro. Atualmente, no Texas, na Califórnia, no Novo México, no Havaí e no Distrito de Colúmbia, a maioria é hoje minoria. Mais de um terço da população de outros doze estados é composto de latino-americanos, negros e/ou asiáticos. Os latino-americanos já chegam a 42 milhões no país e são o grupo demográfico que mais cresce, respondendo por quase metade do crescimento populacional da nação entre 2004 e 2005; a população de origem asiática, embora bem menor, passou por um aumento similar e espera-se que cresça mais de 200% nos próximos 45 anos. Pouco depois de 2050, segundo projeções de especialistas, os Estados Unidos não serão mais um país de maioria branca. As conseqüências que isso trará para nossa economia, nossa política e nossa cultura ainda são impossíveis de prever com exatidão.
Mesmo assim, quando ouço os comentaristas dizendo que meu discurso é sinal de que chegamos à "política pós-racial" ou de que já vivemos em uma sociedade sem discriminação racial, preciso fazer uma ressalva. Dizer que todos formamos um só povo não é sugerir que nele as questões de raça foram superadas; nem que a luta pela igualdade foi vencida, ou que os problemas hoje enfrentados pelas minorias neste país são em grande parte causados por elas mesmas. Conhecemos as estatísticas: em quase todo indicador socioeconômico, da mortalidade infantil à expectativa de vida, da taxa de emprego à moradia própria, os negros e os latino-americanos continuam bem atrás dos brancos. Nos altos cargos executivos de todos os Estados Unidos, as minorias não estão representadas; no Senado, há apenas três membros latinos e dois asiáticos (ambos do Havaí); e ao escrever isso hoje, sou o único afroamericano no recinto. Sugerir que nossa atitude em relação a raça não tem um papel importante nessas disparidades é fechar os olhos para nossa história e experiência - e uma tentativa de nos livrar da responsabilidade de consertar a situação.
Além disso, embora minha própria criação dificilmente seja um exemplo típico da experiência afro-americana - e embora, por sorte e circunstância, eu hoje ocupe uma posição que me separa da maioria dos solavancos e contusões que o negro comum precisa enfrentar -, sou capaz de relatar a ladainha usual de pequenos insultos que me foram direcionados ao longo de meus 45 anos: seguranças me seguindo quando entro em lojas de departamento, casais brancos que me jogam a chave de seus carros quando estou parado fora do restaurante esperando pelo valet, carros de polícia que me param por nenhuma razão aparente. Sei como é ouvir gente dizer que não posso fazer algo por causa da minha cor, e conheço o gosto amargo da raiva ao engoli-la a seco. Também sei que eu e Michelle devemos estar sempre atentos em relação a algumas das histórias prejudiciais que nossas filhas poderão absorver - da televisão, de músicas, dos amigos e das ruas - sobre quem o mundo acha que elas são, e sobre o que o mundo imagina que deveriam ser.
Pensar a questão da raça de forma clara, portanto, exige que vejamos o mundo em uma tela dividida - para, enquanto olhamos sinceramente para a situação atual do país, termos em mente que tipo de nação queremos, a fim de reconhecer os pecados de nosso passado e os desafios do presente sem ficarmos presos ao cinismo ou desespero. Testemunhei uma profunda mudança nas relações raciais ao longo de minha vida. Fui capaz de senti-la com tanta clareza como alguém sente uma mudança de temperatura. Quando ouço algumas pessoas da comunidade negra negarem essas mudanças, penso que isso não apenas desonra os que lutaram pelo nosso interesse, mas também nos impede de completar o trabalho que eles começaram. Porém, por mais que insista em que as coisas melhoraram, também sei que na verdade melhorar não é o bastante.
"Audácia da Esperança - Reflexões Sobre a Reconquista do Sonho Americano"
Autor: Barack Obama
Editora: Larousse
Páginas: 400
Quanto: Em torno de R$ 49,90
Fonte: Folha de S. Paulo
Obama e a mulher, Michelle, no show realizado ontem no Lincoln Memorial, em Washington; cerimônia de posse será amanhã (20)
Duas pesquisas divulgadas pela manhã colocaram números nessa imagem. Na New York Times/CBS News, mais de 80% dos americanos estão otimistas para seu governo --taxa ao menos nove pontos percentuais superior às dos últimos seis presidentes. Na aferição Washington Post/ABC News, o mesmo percentual tem imagem "favorável" a ele.
Para as perguntas sobre como usará a notória expectativa popular em seu favor, uma resposta ressonante foi dada no fim de semana. Obama lançou o projeto "Organizando-se pela América", em que convoca grupos comunitários que se engajaram em sua campanha para se filiarem a uma nova rede na internet, por meio da qual poderão, diz Obama, "continuar organizando e trazendo mais gente para o processo político".
Na prática, ele tenta reforçar a base de apoio para projetos do governo em ações de voluntariado e arrecadação de dinheiro, mas também de pressão política sobre legisladores e Estados. Assim, quer importar para a Casa Branca o conceito de revolução "de baixo para cima", que o impulsionou na eleição.
A boa notícia para o próximo presidente é que o público que espera tanto de seu governo também está disposto a ter paciência. Na pesquisa do "Times", uma minoria prevê mudança efetiva em áreas prioritárias no primeiro ano de governo (na economia, 17%, e em saúde pública, apenas 9%). A consulta ouviu 1.112 adultos entre 12 e 15 de janeiro (a margem de erro é de três pontos percentuais para mais ou para menos). O número de "otimistas" (80%) é o maior desde a pesquisa começou, no governo de Jimmy Carter (1977, 70%).
Desde então, George W. Bush entrou na Casa Branca com a menor taxa de esperança (64%) e saiu dela com o pior índice de aprovação presidencial de todos os tempos: 22%.
Chão de estrelas
Apesar de a posse de amanhã ser a mais cara da história (mais de US$ 150 milhões), Obama anunciou o corte da verba para fogos de artifício para o Concerto de Posse, de ontem, para economizar --e assim mostrar sintonia com os americanos diante da crise econômica.
As relações de proximidade e distância com o povo oscilam. Ontem, no show no Memorial Lincoln --que teve estrelas como Bono, Beyoncé e Garth Brooks--, a família presidencial ficava no palco protegida por um aquário blindado. Por outro lado, os simpatizantes de Obama compartilharão um dos momentos mais exclusivos da posse: os bailes de gala.
O site MyBarackObama, rede social criada para sua campanha por um fundador do Facebook, convocou os mais de 1 milhão de militantes cadastrados a organizar seus próprios bailes com a comunidade e partilhar juntos da posse, como se fosse Natal ou Ação de Graças.
"Obama é agora como se fosse da minha família. Essa posse também é minha", disse Elisabeth Patrick, vinda de Indiana para a posse.
O Memorial Lincoln foi onde Martin Luther King fez, em 1968, o discurso histórico "Eu tenho um sonho". Obama --que celebra hoje o feriado pelo líder negro-- disse para a multidão: "Vocês vieram por acreditar no que esse país pode ser e vão nos ajudar a chegar lá".
Obama conta o que seu pai fez com homem que o chamou de "macaco"; leia trecho
Barack Obama, o 44º presidente dos Estados Unidos a partir de 20 janeiro, mal conviveu com seu pai, o queniano Barack Obama Sr. Quando Obama ainda era criança, o casamento de seus pais terminou, seu pai retornou à África, e sua mãe, a americana Ann Dunham, casou-se com o indonésio Lolo Soetoro, que tornou-se padrasto do jovem menino.
Mesmo distante de seu pai biológico, Obama cresceu ouvindo histórias sobre ele contadas por sua mãe e seus avós. Obama conta uma delas no livro "A Origem dos Meus Sonhos" (Editora Gente), autobiografia na qual revela a sua história, a história de sua família e a forma como encara o mundo.
A narrativa começa com o pai de Obama sendo chamado de "macaco" por um americano branco em um bar do Havaí. E termina com esse mesmo americano oferecendo dinheiro para o pai de Obama, na tentativa de comprar o seu perdão pelo xingamento racista.
A história, narrada por Obama, pode ser lida na íntegra abaixo, em trecho retirado do livro "A Origem dos Meus Sonhos".
Que meu pai não se parecia nada com as pessoas em torno de mim -- que ele era negro como piche, e minha mãe, branca como leite -- mal foi registrado por minha mente. Na verdade, só me recordo de uma história que se referia explicitamente ao assunto de raça; à medida que eu crescia, ela se repetiria mais frequentemente, como se tivesse capturado a essência de moralidade que a vida de meu pai havia se tornado.
De acordo com a história, após longas horas de estudo, meu pai foi se encontrar com meu avô e vários outros amigos em um bar de Waikiki. Todos estavam alegres, comendo e bebendo ao som de uma guitarra típica havaiana, quando repentinamente um homem branco disse ao garçom, bem alto para todo mundo ouvir, que não se deveria tomar uma boa bebida "perto de um macaco". Houve um momento de silêncio, e as pessoas se voltaram para olhar meu pai, esperando uma briga.
Em vez disso, ele se levantou, caminhou em direção ao homem, sorriu e começou a discursar sobre o absurdo do fanatismo e da intolerância, a promessa do sonho americano e os direitos universais do homem. "Esse sujeito se sentiu tão mal quando Barack terminou", disse vovô, "que ele tirou 100 dólares do bolso e deu a Barack na mesma hora. Pagou todas as nossas bebidas e puu-puus [espécie de tira-gosto típico da cozinha havaiana] pelo resto da noite - e também o aluguel do seu pai pelo resto do mês".
Quando entrei na adolescência, passei a duvidar da veracidade dessa história e a deixei de lado com todo o resto. Até que, muitos anos depois, recebi um telefonema de um nipo-americano que dizia ter sido colega de faculdade de meu pai no Havaí e que, agora, dava aulas em uma universidade no Meio-Oeste dos Estados Unidos.
Ele foi muito educado, embora estivesse um pouco envergonhado por sua impulsividade. Explicou que havia lido uma entrevista comigo em um jornal local e que a menção ao nome de meu pai havia lhe trazido de volta muitas recordações. Então, durante o curso de nossa conversa, ele repetiu a mesma história que meu avô havia me contado, a história de um homem branco que havia tentado comprar o perdão de meu pai. "Nunca me esquecerei disso", disse-me o homem ao telefone; e na sua voz ouvi o mesmo tom que eu tinha ouvido do meu avô tantos anos antes, aquele tom de descrença -- e de esperança.
"A Origem dos Meus Sonhos"
Autores: Barack Obama
Editora: Editora Gente
Páginas: 452
Quanto: Em torno de R$ 49,90
Obama foi confundido com manobrista e seguido por seguranças; leia depoimento.
A plena realização do sonho de Martin Luther King de viver em um país onde as pessoas são julgadas pelo caráter e não pela cor da pele ainda não aconteceu. Quem afirma é Barack Obama, que assume a presidência dos Estados Unidos amanhã (20).
"Sou capaz de relatar a ladainha usual de pequenos insultos que me foram direcionados: seguranças me seguindo quando entro em lojas de departamento, casais brancos que me jogam a chave de seus carros quando estou parado fora do restaurante esperando pelo valet, carros de polícia que me param por nenhuma razão aparente", diz Obama.
O "desabafo" do futuro presidente dos EUA está no livro "Audácia da Esperança - Reflexões Sobre a Reconquista do Sonho Americano" (Larousse, 2007), ensaio autobiográfico no qual Barack Obama fala sobre as tensões raciais nos EUA, sua vida e apresenta suas idéias para o país. No livro, ele também discute Bush e seu governo, a intervenção norte-americana no Iraque, o terrorismo islâmico e outros temas americanos.
No trecho do livro que pode ser lido abaixo, Obama usa exemplos de sua vida pessoal e indicadores sociais para comprovar seu argumento de que o racismo ainda não foi superado nos EUA.
Quando sou apresentado às pessoas, elas às vezes citam um trecho do discurso que fiz na Convenção Nacional Democrata de 2004 que pareceu causar comoção: "Não existem os Estados Unidos dos negros, os Estados Unidos dos brancos, os Estados Unidos dos descendentes de latinos ou os Estados Unidos dos descendentes de asiáticos - existem apenas os Estados Unidos da América". Para eles, essa idéia reflete uma visão dos Estados Unidos finalmente livres do passado de Jim Crow e da escravidão, dos campos de concentração japoneses e dos bóias-frias mexicanos, das tensões trabalhistas e dos conflitos culturais - um país que concretiza o desejo de Martin Luther King de não sermos julgados pela cor de nossa pele, mas pelo nosso caráter.
De certa forma, não tenho outra escolha a não ser acreditar nessa visão dos Estados Unidos. Como filho de negro com branca, nascido na "mistura de raças" do Havaí - e com uma irmã meio indonésia (que é normalmente confundida com mexicana ou porto-riquenha), um cunhado e uma sobrinha de ascendência chinesa, alguns parentes consanguíneos que parecem a Margaret Thatcher e outros que poderiam se fazer passar pelo Bernie Mac, de maneira que as reuniões familiares no Natal parecem uma reunião da Assembléia-Geral da ONU -, nunca tive como restringir minha lealdade com base na raça, ou medir meu valor baseado na minha tribo.
Além disso, acredito que parte da genialidade dos Estados Unidos deva-se à sua capacidade de incorporar os recém-chegados e construir uma identidade nacional com base nos diferentes povos que chegaram às nossas terras. Nisso recebemos a ajuda de uma Constituição que, apesar de ter sido estragada pelo pecado original da escravidão, tem em seu bojo a idéia de igualdade perante a lei; também contamos com a ajuda de um sistema econômico que, mais do que qualquer outro, ofereceu oportunidades a todos que tivessem potencial, sem considerar status, título ou classe social. É claro, os sentimentos de racismo e xenofobia têm minado repetidamente esses ideais; os poderosos e privilegiados têm muitas vezes explorado o preconceito para facilitar o favorecimento próprio. Mas, nas mãos dos reformistas, de Tubman a Douglass, Chavez e King, esses ideais de igualdade aos poucos moldaram a maneira como enxergamos a nós mesmos e possibilitaram o surgimento de uma nação cujo multiculturalismo assumiu uma forma única, diferente da de qualquer outro país.
Por fim, essas linhas em meu discurso descrevem a realidade demográfica dos Estados Unidos do futuro. Atualmente, no Texas, na Califórnia, no Novo México, no Havaí e no Distrito de Colúmbia, a maioria é hoje minoria. Mais de um terço da população de outros doze estados é composto de latino-americanos, negros e/ou asiáticos. Os latino-americanos já chegam a 42 milhões no país e são o grupo demográfico que mais cresce, respondendo por quase metade do crescimento populacional da nação entre 2004 e 2005; a população de origem asiática, embora bem menor, passou por um aumento similar e espera-se que cresça mais de 200% nos próximos 45 anos. Pouco depois de 2050, segundo projeções de especialistas, os Estados Unidos não serão mais um país de maioria branca. As conseqüências que isso trará para nossa economia, nossa política e nossa cultura ainda são impossíveis de prever com exatidão.
Mesmo assim, quando ouço os comentaristas dizendo que meu discurso é sinal de que chegamos à "política pós-racial" ou de que já vivemos em uma sociedade sem discriminação racial, preciso fazer uma ressalva. Dizer que todos formamos um só povo não é sugerir que nele as questões de raça foram superadas; nem que a luta pela igualdade foi vencida, ou que os problemas hoje enfrentados pelas minorias neste país são em grande parte causados por elas mesmas. Conhecemos as estatísticas: em quase todo indicador socioeconômico, da mortalidade infantil à expectativa de vida, da taxa de emprego à moradia própria, os negros e os latino-americanos continuam bem atrás dos brancos. Nos altos cargos executivos de todos os Estados Unidos, as minorias não estão representadas; no Senado, há apenas três membros latinos e dois asiáticos (ambos do Havaí); e ao escrever isso hoje, sou o único afroamericano no recinto. Sugerir que nossa atitude em relação a raça não tem um papel importante nessas disparidades é fechar os olhos para nossa história e experiência - e uma tentativa de nos livrar da responsabilidade de consertar a situação.
Além disso, embora minha própria criação dificilmente seja um exemplo típico da experiência afro-americana - e embora, por sorte e circunstância, eu hoje ocupe uma posição que me separa da maioria dos solavancos e contusões que o negro comum precisa enfrentar -, sou capaz de relatar a ladainha usual de pequenos insultos que me foram direcionados ao longo de meus 45 anos: seguranças me seguindo quando entro em lojas de departamento, casais brancos que me jogam a chave de seus carros quando estou parado fora do restaurante esperando pelo valet, carros de polícia que me param por nenhuma razão aparente. Sei como é ouvir gente dizer que não posso fazer algo por causa da minha cor, e conheço o gosto amargo da raiva ao engoli-la a seco. Também sei que eu e Michelle devemos estar sempre atentos em relação a algumas das histórias prejudiciais que nossas filhas poderão absorver - da televisão, de músicas, dos amigos e das ruas - sobre quem o mundo acha que elas são, e sobre o que o mundo imagina que deveriam ser.
Pensar a questão da raça de forma clara, portanto, exige que vejamos o mundo em uma tela dividida - para, enquanto olhamos sinceramente para a situação atual do país, termos em mente que tipo de nação queremos, a fim de reconhecer os pecados de nosso passado e os desafios do presente sem ficarmos presos ao cinismo ou desespero. Testemunhei uma profunda mudança nas relações raciais ao longo de minha vida. Fui capaz de senti-la com tanta clareza como alguém sente uma mudança de temperatura. Quando ouço algumas pessoas da comunidade negra negarem essas mudanças, penso que isso não apenas desonra os que lutaram pelo nosso interesse, mas também nos impede de completar o trabalho que eles começaram. Porém, por mais que insista em que as coisas melhoraram, também sei que na verdade melhorar não é o bastante.
"Audácia da Esperança - Reflexões Sobre a Reconquista do Sonho Americano"
Autor: Barack Obama
Editora: Larousse
Páginas: 400
Quanto: Em torno de R$ 49,90
Fonte: Folha de S. Paulo
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